Crónica de Jorge C Ferreira | Tanto tempo

Jorge C Ferreira

Crónica de Jorge C Ferreira
Tanto tempo

 

Quantas horas demora a euforia da vida? Quantas vidas enganamos com uma cara de felicidade? Momentos, doçuras, vaidades, ternuras. A vida a andar para a frente. O futuro que tentamos descortinar ao longe. A alegria que se quer encontrar. O tempo que passa com uma frenética rapidez e uma outra vida quase parada num canto do tempo. Uma vida esquecida.

O tempo em que éramos só futuro. O pinhal e a praia. A roupa da moda. Os bronzeadores. A boîte no escuro de uma cave. As luzes diferentes da luz que o dia nos tinha dado. Enganos e desenganos. Jogos de sedução. Mulheres louras, ruivas sardentas e mulheres morenas com olhos de mel. Uma noite que se perdia ou ganhava entre tentações e desilusões.

Os lugares que a noite tinha. As várias faunas que percorriam os mais variados lugares. Muita gente se cruzava entre lugares. Tudo até ao fim da loucura. Os lugares da última ou da primeira sopa. Aconchegar o estômago. Matar a noite.

Quantos minutos são necessários para pensar no que se podia ter feito enquanto não se fez nada? Havia livros que acompanhavam todo o tempo que o dia tinha. Livros procurados, trocados. Livros, alguns deles, proibidos. Os livros emprestados e nunca recuperados. A noite nos espaços vazios das estantes. Entender que os livros também se amam. Ter saudades dos livros desaparecidos.

Estamos noutro tempo. Discutia-se em sussurro o futuro ansiado. Discutiam-se os livros, os filmes, as peças de teatro. O aparecimento dos grupos independentes. Textos de realidades que ambicionávamos. Sonhava-se com Londres, Paris. Sonhava-se com a liberdade.

A música, O “Radio Caroline”, um rádio pirata que emitia de um barco fora da baía de Ramsey na Ilha de Man. Começavam a ter muita audiência os programas portugueses de autor. Havia quem fosse para os estúdios ouvir e ver o autor ao vivo. Já cheirava a algo de novo. A discussão continuava à volta de uma bica. Os trovadores começavam a cantar nas Universidades e nas sociedades operárias da margem sul. Começavam a chegar discos dos cantores exilados, imediatamente retirados do mercado.

O cutelo da tropa em cima do pescoço. Uma guilhotina, de lâmina afiada, o carrasco com um passa-montanhas, um ditador. Todo o cenário apontava para o desastre. No entanto, no nosso interior, uma vontade imensa de mudar tudo. Uma enorme esperança. Saber que se tinha de arriscar.

Havia de chegar aquele dia, aquela madrugada. O rumor corria. Só não se sabia quando iria acontecer. Até que o inesperado, há muito esperado, aconteceu. Um banho de luz.

Tudo é assim, um dia amanhecemos novos. A nova vida, come pedaços de uma outra vida. Ficam os amigos de todos os tempos para toda a vida.

Ainda hoje há coisas que nos incomodam, que nos preocupam. As guerras, as falsidades, as traições. Essa inquietude que continua a viver em nós. Somos de um tempo solidário. Em que estávamos sempre prontos a ajudar o outro. Sentíamos tudo isso como uma obrigação.

«Falaste sobre tanto tempo percorrido. Que vidas!

Fala de Isaurinda.

«Sabes, por vezes precisamos de deitar cá para fora muitas coisas de muitos tempos.»

Respondo.

«É possível que tenhas razão, mas por vezes dói.»

De novo Isaurinda e vai, um ar pensativo.

 

Jorge C Ferreira Dezembro/2023(417)


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velhinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

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16 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Tanto tempo”

  1. Lenea Bispo

    O tempo pergunta ao tempo, quanto tempo o tempo tem…
    Não se mede , não se abarca no nosso ângulo de visão . Não o agarramos, ele foge- nos por entre os dedos como areia da praia. Um pinhal e um a praia… o tempo dos namoros , das nossas pequenas conquistas , onde tudo era aprazível e alguma contrariedade , tentaríamos cortá- la com o cutelo da Esperança porque tínhamos todo o tempo do mundo para recuperar o perdido.
    Hoje, olhamos para trás e só no resta recordar a felicidade enquanto que as coisas piores, já não indo a tempo de as mudar, tentaremos apaziguar o nosso espírito, pensando que fizemos sempre o melhor, ou pelo menos, aquilo que se nos oferecia fazer no momento.
    E, todo o tempo é tempo de esperança .

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Lénea. Tão ágil essa tua forma de escrever. Esse tempo que teimamos em percorrer várias vezes. Sentirmo-nos mais leves para tentar continuar a caminhada. A minha imensa gratidão pela tua presença neste nosso espaço. Abraço grande

  2. Jorge C Ferreira

    Obrigado Eulália. Tempos nossos. Tempos vividos à pressa. Outros tempos. A minha imensa gratidão pela tua presença. Beijinhos.

  3. Coutinho Eulália Pereira

    Excelente crónica. Bela viagem no tempo, em busca das memórias que nos construíram.
    O tempo em que os sonhos tinham as cores do arco íris. O tempo em que éramos só futuro. O tempo da gargalhada espontânea.
    Os livros lidos avidamente, os proibidos, os trocados e tantos que ficaram esquecidos. As conversas a baixa voz como um segredo.
    A música francesa e os grupos ingleses que nos faziam voar.
    A ânsia pela liberdade que chegou naquela manhã de Abril.
    Hoje, permanece a nostalgia,. Cresce a desilusão quando se vêem notícias e o mundo se torna cruel.
    Obrigada Amigo por este vaguear pelo passado.
    Que bela viagem!
    Grande abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Eulália. Que bom o que escreveu. Passear pelo passado. Pelas aventuras e desventura. Sempre muito grato pela sua presença. Abraço grande

  4. José Luís Outono

    Momentos que ainda hoje equaciono … o ontem e o hoje!
    Depois de ler o teu maravilhoso “desabafo” , recostei-me na cadeira e reflecti relógios de vidas , onde era proibido avançar ou retroceder, face aos perigos eminentes de uma avaria temporal, e mesmo que agilizássemos a corda ao sonho, era um rodar imparável sem objectivo nascente.
    Momentos, que não dispenso de ler (te) e suavizo como vitamina comunicadora e sonhadora constantes de reflexões verdade.
    Momentos de dizer (te), amigo abraço muito grato!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado José Luís. Poeta. A tua escrita inspirada sempre a embelezar este espaço. É sempre gratificante ler-te. A minha imensa gratidão. Abraço grande

  5. Maria Luiza Caetano Caetano

    Adorei, tudo o que diz e tão bem. É inesquecível o tempo da nossa juventude. A sua, bem marcante e bem vivida, meu Amigo. Tempo maravilhoso, que tão bem descreve e me encanta lembrar. A juventude jamais se esquece, embora a minha e a de tantos, tenha sido vivida em tempos difíceis. O tempo é veloz e vai deixando saudades. Felizes os que sabem sonhar.
    Grata pelo que li e me fez recordar, bons amigos e bons momentos, meu querido poeta.
    Abraço grande e Amigo.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria Luiza. Sempre lindos e generosos os seus comentários. É uma alegria enorme ter a sua presença neste nosso espaço. A minha enorme gratidão. Abraço grande

  6. Filomena Geraldes

    mergulhar no passado.
    entrar nessa viagem sem retorno
    cobiçar as reminiscências. revivê-las. acesas. inconstantes.
    fiéis como cães que
    não largam a trela ao dono.
    ir para além do que vivemos.
    escutar o chamado longínquo
    a origem de todos os sonhos
    ir até ao fundo.
    onde se alojam as raízes da desfaçatez
    da ousadia. dos ímpetos. do sangue
    quente que nos fazia perder o medo.
    íamos.
    percorríamos as noites. ocultas.
    os bares. as esquinas embriagadas
    de certezas.
    ouvíamos o apelo das cumplicidades.
    vogávamos em todos os mares.
    mesmo os mais desassossegados.
    enfrentávamos os demais temporais.
    o sonho era já ali. tão perto.
    e foi.
    foi como a luz de um farol
    abertos os olhos de espanto e euforia.
    e eram multidões navegando por
    entre ruas. avenidas. becos.
    e eram brados.
    a descoberta de uma nova palavra.
    liberdade trazida em braços.
    a nossa liberdade!
    e era uma voz ondular que nos despertava.
    vinda do mais profundo sentir
    uma passagem para o hoje
    talvez um pássaro azul.
    o testemunho.
    a erudição.
    o eco.
    o teu nome.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Mena. Mais um poema enorme. Uma escrita vinda do teu sentir mais profundo. A vida à rasgar a pele. Lindo o que nos dizes. A minha maior gratidão por estares aqui. Abraço enorme

  7. Isabel Soares

    Uma crónica comovente sobre um tempo história. Um tempo pessoal e nacional. Longínquo. Oposto ao presente, em múltiplos sentidos, mas também possibilidade da sua existência. Um tempo matriz. descrito muitas vezes, grávido Da Liberdade. Germinou o feto e nasceu a criança. Estranhamente, parida sem grandes sobressaltos, apesar dos “nove meses” de intensos sustos e percalços. Um tempo onde se lê como autor e actor de vivências concretas, num outro modo de viver e pensar as “coisas” e os outros e abstractas, intelectualmente construídas e alcançadas numa “premonição” de lutas assertivas e teimosamente corajosas. Convictas numa mudança de paradigma sócio-político e cultural conquistado. Autor e actor. Autores e actores. A maioria anónimos e incógnitos. Ilegítimos a vingar a identidade sem “pai” e assumindo as futuras paternidades (os filhos incógnitos desapareceram).
    Um tempo de juventude. Onde os comportamentos se pautam pela alegria genuína de ser (e ter tempo, um horizonte, ainda sem fim). Simplesmente ser e sentir. Muito. Tudo ao mesmo tempo numa verborreia saudável (própria da energia inesgotável e de insónia lúcida). O quase não-limite; a invulnerabilidade que os medos não aniquilavam. Os riscos reais a dissiparem-se na noite. Um tempo-noite, (com a sua luz)criativo e dual (a pulsão “infantil” e a pulsão “adulta”, a emergir nas madrugadas. Um tempo-dia, castrador; opressivo; de escuridão. Os não-ditos sempre presentes e a necessidade premente de os desfazer.
    Um texto sobre o tempo Da Liberdade. Onde a solidariedade, o companheirismo, a honra, a palavra, a empatia eram leis invioláveis; marcas de carácter de muitos. Tantos. Um tempo da rádio, dos livros, da sedução e tentações várias. Um tempo no “fio da navalha”.
    Um tempo rasgado numa madrugada em que o estômago não necessitou de conforto e o dia amanheceu com luz e deu à luz muitas crianças (recentemente nascidas e as futuras). Um escrito de reinvindicação legítima dessa paternidade.. Em todas as palavras tocamos o pai, a pluralidade de pais, por isso é também dolorosamente emocionante lê-las. Obrigada, pai. E agora? Que caminhos trilhar? Dessa Liberdade matriz única, como continuar? Como alimentar a inquietação (motor primeiro de qualquer mudança, lê-se, num texto-tempo de uma vida com um passado que não se apaga, de múltiplos filhos, também, já pais)? Como ser agora mãe? Pai?

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Isabel. Sempre brilhantes os textos com que comenta as minhas crónicas. Ir ao mais fundo de nós. Analisar as raízes e sonhar o futuro. Uma escrita emocionada e emocionante. A minha imensa gratidão. Abraço grande

  8. Claudina Silva

    Querido Poeta como foi maravilhoso ler a tua crónica! Relembrar os tempos que viveste que também foram meus! Um tempo que estará vivo para sempre na nossa memória.
    Aproveitar o dia a dia para reviver esses tempos difíceis mas que deixaram saudades! Parabéns! Adorei!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Claudina, sim, esse nosso tempo. Começar a trabalhar muito novo. Adorei ler o teu comentário. Um tempo em que parecia haver tempo para todos os sonhos. A chegada da liberdade. A minha imensa gratidão. Abraço grande.

  9. Eulália Martins

    Como quase sempre revejo-me e à minha juventude no que escreves. Tempos outros tão diferentes
    Beijinho e obrigada

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